A Inteligência Artificial (IA) emergiu como uma das mais significativas inovações tecnológicas do século XXI, impactando profundamente diversas áreas, incluindo a medicina. Na cardiologia, em particular, a IA está transformando a maneira como as doenças cardíacas são diagnosticadas, tratadas e monitoradas. Este avanço não apenas aprimora a precisão dos diagnósticos, mas também personaliza os tratamentos e oferece perspectivas promissoras para o futuro da saúde cardíaca.

Detecção Precoce de Doenças Cardíacas

A detecção precoce é essencial para o tratamento eficaz de doenças cardíacas, e a IA tem desempenhado um papel fundamental nesse aspecto. Tradicionalmente, a interpretação de eletrocardiogramas (ECGs) dependia da experiência do médico para identificar anomalias sutis nos ritmos cardíacos. Porém, com o advento de algoritmos de aprendizado de máquina, tornou-se possível analisar grandes volumes de dados de ECGs com alta velocidade e precisão aprimorada.

Um estudo publicado na revista Circulation da American Heart Association demonstrou que um algoritmo de IA foi capaz de detectar fibrilação atrial – um tipo comum de arritmia cardíaca – com precisão superior a 90%, mesmo em pacientes assintomáticos no momento do exame. Essa capacidade permite intervenções precoces que podem prevenir complicações graves, como acidentes vasculares encefálicos (popularmente chamados de “derrames”).

Esses algoritmos têm sido, cada vez mais, incorporados em dispositivos vestíveis, como os smartwatches. Isso facilita o monitoramento contínuo e a detecção de irregularidades cardíacas em tempo real, trazendo a tecnologia diretamente para o cotidiano dos pacientes. Na área de exames de imagem, a IA também tem causado um impacto significativo. Pesquisadores brasileiros desenvolveram um sistema que analisa imagens de ecocardiogramas para detectar cardiomiopatias – doenças do músculo cardíaco – com maior eficiência. O sistema identifica padrões que podem passar despercebidos aos olhos humanos, permitindo diagnósticos mais rápidos e precisos.

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Recentemente, durante o Congresso da American Heart Association de 2024, foi apresentado o Estudo PanEcho, que avaliou a eficácia do uso da IA na interpretação de ecocardiogramas. Os resultados evidenciaram um aumento na capacidade de interpretação e acurácia, mesmo em cenários tecnicamente limitados, destacando o potencial da IA em diversificar e aprimorar a qualidade dos diagnósticos.

Outro exemplo vem da Sociedade Europeia de Cardiologia, que conduziu um estudo utilizando IA para analisar tomografias das artérias coronárias. O algoritmo desenvolvido foi capaz de medir com precisão o acúmulo de placas nas artérias e identificar pacientes com alto risco de ataque cardíaco, especialmente aqueles com placas vulneráveis, mais inflamadas e propensas à ruptura. Essa identificação precoce é crucial para a implementação de medidas preventivas eficazes.

Além disso, uma revisão sistemática publicada recentemente mostrou que a aplicação da Inteligência Artificial (IA) na análise de imagens de ressonância magnética cardíaca (RMC) melhorou significativamente a detecção de inflamações e cicatrizes no miocárdio. Por meio de algoritmos de aprendizado de máquina, os estudos analisados demonstraram maior eficácia em do uso da IA em comparação com a análise convencional por radiologistas, permitindo intervenções mais rápidas e eficazes.

Personalização de Tratamentos e Acompanhamento de Pacientes com Doenças Crônicas

A medicina de precisão, que busca tratamentos sob medida para cada paciente, é um dos grandes benefícios trazidos pela IA. Analisando dados genéticos, históricos médicos e respostas a tratamentos anteriores, a IA auxilia médicos na escolha de medicamentos e dosagens ideais para cada indivíduo. A American College of Cardiology destaca o uso da IA no ajuste da terapia com estatinas – medicamentos utilizados para reduzir o colesterol – em pacientes com risco de doença arterial coronariana. Através da IA, é possível prever quais pacientes responderão melhor a determinados medicamentos, reduzindo efeitos colaterais como dores musculares e cãibras, e aumentando a eficácia do tratamento.

Para pacientes com doenças cardíacas crônicas, como insuficiência cardíaca, que requerem monitoramento constante, a IA vem facilitando esse acompanhamento por meio de dispositivos vestíveis e aplicativos que coletam dados em tempo real. Esses dispositivos inteligentes monitoram frequência cardíaca, pressão arterial e níveis de atividade física. Os dados coletados são analisados por algoritmos de IA capazes de detectar mudanças sutis no estado de saúde do paciente. Caso alguma anormalidade seja identificada, um alerta é enviado ao paciente e ao médico, possibilitando intervenções imediatas.

Um exemplo notável vem de um hospital em Boston, que implementou um sistema de IA para monitorar pacientes com insuficiência cardíaca após a alta hospitalar. O algoritmo analisava dados como peso, pressão arterial e sintomas relatados pelos pacientes através de um aplicativo. Essa abordagem resultou em uma redução de 30% nas hospitalizações, conforme relatado no Journal of the American College of Cardiology. Isso não apenas melhora a qualidade de vida dos pacientes, mas também reduz os custos de saúde associados às hospitalizações frequentes.

Além disso, a IA tem agilizado diagnósticos em ambientes de emergência. A interpretação rápida de exames de ECG e de imagem por algoritmos inteligentes acelera a identificação de condições críticas, como infarto agudo do miocárdio, arritmias malignas, aneurismas e dissecções aórticas, permitindo intervenções imediatas que salvam vidas.

A assistência da IA também se estende à adesão aos tratamentos. Aplicativos inteligentes podem lembrar os pacientes de tomar seus medicamentos nos horários corretos e seguir as recomendações médicas, contribuindo para a eficácia do tratamento e para o gerenciamento adequado das doenças crônicas.

Ética e Segurança no Uso da IA na Cardiologia

Apesar dos numerosos benefícios, o uso da IA na medicina – e especificamente na cardiologia – levanta questões éticas e de segurança que precisam ser cuidadosamente consideradas. A eficácia da IA depende da coleta e análise de grandes volumes de dados de pacientes. Garantir a privacidade dessas informações é de suma importância. A American Heart Association alerta sobre a necessidade de instituições médicas implementarem medidas robustas de segurança cibernética para proteger os dados contra vazamentos e ataques, o que, por sua vez, pode implicar em investimentos significativos em infraestrutura e segurança digital.

Muitos algoritmos de IA são complexos e operam como “caixas-pretas”, onde o processo de decisão não é facilmente compreensível. A Sociedade Europeia de Cardiologia enfatiza a importância da transparência nos modelos de IA permitindo que médicos e pacientes entendam como as decisões são tomadas. A possibilidade de explicar o raciocínio por trás de um diagnóstico ou recomendação de tratamento é fundamental para construir confiança na tecnologia, pois em casos de erros diagnósticos ou terapêuticos, surge a questão de quem é o responsável: o sistema de IA ou o médico?

Neste cenário, estabelecer diretrizes claras sobre a responsabilidade legal é imprescindível. Instituições médicas, desenvolvedores de IA e órgãos reguladores devem colaborar para definir esses parâmetros, garantindo proteção tanto para os pacientes quanto para os profissionais de saúde. A introdução da IA na medicina não deve substituir o papel essencial do médico, mas sim complementá-lo.

A Sociedade Brasileira de Cardiologia destaca que a IA deve ser vista como uma ferramenta de apoio aos profissionais de saúde. A empatia, o julgamento clínico e a experiência humana são insubstituíveis. É crucial manter uma comunicação clara com os pacientes sobre como a IA está sendo utilizada em seu cuidado, assegurando que sua utilização seja ética e centrada no paciente.

E o que esperar do futuro?

O futuro da IA na cardiologia é promissor e guarda potencial para transformações ainda mais profundas. Com o avanço contínuo da tecnologia, espera-se que os sistemas de IA se tornem mais precisos e amplamente integrados à prática médica diária. Pesquisas em andamento buscam desenvolver modelos de IA capazes de prever eventos cardíacos com anos de antecedência, analisando uma combinação de fatores genéticos, ambientais e de estilo de vida. Tal avanço poderia revolucionar a prevenção de doenças cardiovasculares, que permanecem como a principal causa de mortalidade global.

Além disso, a IA tem o potencial de democratizar o acesso a cuidados especializados. Em áreas remotas ou com escassez de profissionais de saúde, a IA pode facilitar diagnósticos e tratamentos de alta qualidade, reduzindo disparidades em saúde e salvando vidas. Contudo, é fundamental lembrar que a tecnologia deve servir à humanidade. O toque humano, a compaixão e a compreensão que os médicos trazem ao tratamento dos pacientes são insubstituíveis. A sinergia entre a expertise médica e o poder da IA representa o caminho ideal para avanços significativos na saúde cardíaca.

*Por Dr. Rodrigo Souza – CRM-PA 7926 / RQE 4130 / 4137
Cardiologista
Membro titular da SBC e SBHCI